quinta-feira, 13 de setembro de 2012
A madrugada e a sacada.
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(Foto autor desconhecido)
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Eu meio que saio de mim e analiso a cena de fora. Essa sou eu, cabelos de um vermelho tímido, algumas tatuagens notórias, escutando Peggy Lee e acendendo um cigarro que a muito não acendia, na varanda de uma noite fria da cidade de Buenos Aires. Agora diz isso para os meus 15 anos. Tatuagens? Cabelos vermelhos? Cigarro? Buenos Aires? Quem é Peggy Lee? É, acho que eu gosto, menos do cigarro e do cabelo vermelho, mesmo que tímido. Eu estou me vendo escapar pelos dedos faz alguns meses, mas acabo de ter a constatação, tô ficando pratica e lógica demais, começou a acontecer sorrateiramente, foi sutíl, hoje caiu a ficha, nessa sacada, me vi da varanda, que aperto preocupado eu senti no peito. Eu vejo pessoas saindo de uma bienal, me agrada a forma que estão vestidas, se parece com a música que estou ouvindo, e de repente corro pra pegar um papel e um lápis, e volto, sento no banquinho do canto e de repente voltei a escrever. Eu olho uma luz acessa em uma janela do prédio em frente à uma altura que não me permite conhecer todo o interior da sala, mas a luz é bonita, luz de abajur, um quadro em preto e branco denuncía um estilo literal, acho bonito, mas me parece a casa de um morador solitário, uma sala eu imagino sem muitos móveis, provavelmente alguns livros em uma estante e uma decoração peculiar. Um computador perto da sacada, e um homem aparenta consertar uma câmera fotográfica ao lado do abajur em cima da escrivaninha, pela distância não vejo muito bem, mas tem barba, é magro e parece calmo e concentrado, também fiquei. Eu olho para baixo, eu grito por mim na esperança de não ter ido tão longe. Eu peguei um atalho peculiar, típico, talvez previsível, mas não pra mim, não sei mais. Uma família de chineses saem de dentro do restaurante ao lado do prédio do qual a família é dona e começa então uma discussão engraçada, algumas tentativas de agressão física de ambas as partes, parece uma briga de negócios, impossível identificar, os gestos são tão esquisitos quanto a língua, todos pararam pra ver, algumas pessoas da bienal riem, eu rio. Um carro da polícia também para no local, eles conversam um pouco com os policias e todos entram de novo no restaurante. Eu olho ao meu redor, vejo esses prédios de uma arquitetura da metade do século dezenove, pessoas diferentes andando na calçada, ônibus diferentes trafegando e conversas em uma outra língua acontecendo dentro de táxis que passam naquela avenida cheia de luzes, embaixo da minha sacada. E eu meus senhores, eu estou apática, mas havia colocado um blues no fone de ouvido e percebi que eu estava esquecendo da beleza que via nas coisas. Eu não estava admirando como deveria, como normalmente faria, e eu tava me fazendo falta, e ai eu ouço música, eu olho ao meu redor e começo a escrever, eu contemplo o cotidiano de um estranho, eu vejo arte em uma cena comum, eu vejo graça em uma cena incomum, eu vejo uma cena digna de um filme do Almodôvar na sacada ao lado. Já a alguns meses não me permitia nada mais que a apatia e então um simples momento na sacada me enche de sensações, de lembranças de quem eu sou, e de como eu vejo a vida, e de repente eu não sou mais tão prática e esportista, eu sou lírica e poética, sim, esse sou eu, e eu sorrio de leve pra mim mesma enquanto abaixo a cabeça. Acho que ouvi um ruído na porta, graças a Deus, sou eu, voltei a tempo de tomar as rédeas da minha vida e de dar 'buenas noches' para a senhora do apartamento ao lado em pé na sua varanda com as luzes apagadas e rodeada de vasos de planta que ela rega todas as madrugadas vestida em sua camisola super estampada e seus cabelos despenteados sem nunca precisar de luz. É, ela é engraçada, mas me parece feliz. Boa Noite.
(Recomendação da autora, ler ouvindo 'Stormy Weather - Peggy Lee'.)
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